Este não é um atributo exclusivo dos humanos: os cachorros também têm memória.
Os cachorros realmente têm memória? Eles são capazes de se lembrar das coisas ruins e boas que acontecem? Eles são dotados de um “gravador mental” que registra os acontecimentos vivenciados? Para quem vive com um cão, estes são fatos inquestionáveis.
Mesmo assim, os cientistas também estão interessados no assunto. Diversas pesquisas vêm sendo realizadas, inclusive para tentar entender também como funciona a memória humana. Um dos estudos mais recentes foi realizado na Universidade de Budapeste (Hungria) e publicado em 2017 na revista científica Current Biology.
A memória canina
A capacidade de retenção de vivências na memória é diferente nos humanos e nos cães. Os nossos peludos utilizam principalmente a memória de curto prazo, em que ficam retidos os acontecimentos mais recentes.
Para estimular a fixação (isto é necessário no adestramento, por exemplo), é necessário que os animais se submetam às mesmas vivências, com respostas sempre semelhantes. Nos treinamentos básicos, eles aprendem, depois de várias tentativas, que conseguem obter um petisco sempre que fazem o que o tutor espera deles.
Depois de um tempo, eles simplesmente esquecem a recompensa, mas, se o método de adestramento empregado tiver sido positivo, eles reterão a informação e conseguirão acessá-la mesmo em situações esporádicas.
O esquecimento rápido faz parte da capacidade de adaptação às condições objetivas de vida. A estabilidade obtida pela sociedade humana ainda não foi totalmente assimilada pelos cachorros, mesmo porque as mudanças súbitas são mais frequentes entre eles.
Entre os humanos, a memória também é coadjuvada pelas diversas formas de registro: escrita, escultura, desenho e, mais recentemente, gravações eletrônicas em vídeo e áudio. Os cachorros não possuem nenhuma destas habilidades e, por isso, constroem a memória de forma diferente.
Os cães parecem não apresentar a capacidade de memória de longo prazo. Vivências ocorridas, depois de um período variável, são simplesmente esquecidas. Mas, se por um lado, eles não se lembram de uma atividade prazerosa ocorrida na semana anterior, por outro, também não guardam mágoa ou rancor, porque esquecem facilmente as desatenções e até mesmo agressões físicas.
A memória canina, ao que tudo indica, precisa ser continuamente alimentada. Os estímulos positivos (afagos, carinho, atenção, palavras de incentivo, recompensas, etc.) são úteis para fixar aprendizados e comportamentos, mas exigem dedicação por parte dos tutores e adestradores.
Quanto aos estímulos negativos, eles também parecem ser eliminados com o tempo. felizmente, poucos cães retêm a lembrança de maus tratos, agressões, frio, fome, etc. As exceções são os animais continuamente expostos à violência, que podem desenvolver traumas.
Nesses casos, eles podem inclusive associar vivências – e muitas vezes deixar os humanos sem entender o que está acontecendo. Por exemplo: se o cão conviveu por um tutor irresponsável e violento que tinha o costume de assobiar, ele pode relacionar o som aos maus tratos.
As memórias armazenadas pelos cães estão associadas a estímulos sensoriais: eles sempre relacionam as vivências a imagens, texturas, sabores e, principalmente, a cheiros e ruídos: a audição e o olfato são os principais sentidos dos peludos.
Um estudo
Os cientistas da Universidade de Budapeste centralizaram a análise na memória episódica (quando um ser faz alguma coisa ou vivencia uma situação qualquer e é capaz de se lembrar disso posteriormente).
O estudo comprovou que os cachorros são dotados de memória episódica, que é usada para processar informações, associar causas e efeitos e acessar o aprendizado em outras situações, que podem ser similares ou opostas.
Pela primeira vez, uma pesquisa científica comprovou a capacidade canina de reter e evocar eventos complexos. Os dados obtidos já foram analisados e revisados por outras instituições acadêmicas, como a Universidade de Oxford (Grã-Bretanha).
As pesquisas foram realizadas por Claudia Fugazza, coordenadora do Comparative Ethology Research Group. O método empregado foi o do “faça o que eu faço”: observe, assimile e repita o que eu estou fazendo.
Na primeira etapa, os cachorros foram estimulados a reproduzir ações simples, como dar um salto depois que o voluntário demonstrava o gesto esperado. Apenas parte dos cães já conhecia o comando “pula”, mas praticamente todos os 17 animais reproduziram a ação depois que observaram os saltos.
Os cães primeiramente observaram os movimentos dos voluntários, sem fazer nada. Na sequência, eles foram convidados para a ação (eles se acostumaram à sua dupla humana previamente) e, por fim, solicitados a repetir o gesto sem o exemplo do voluntário. Os resultados obtidos foram os seguintes:
- 94,1% dos cães imitaram os tutores;
- 58,8% repetiram a ação proposta depois de um minuto;
- 5,3% repetiram a ação depois de uma hora.
O procedimento mostra que a capacidade de reter a informação vai se esvaindo à medida que o tempo passa. Vale notar que os cães foram expostos a diversas ações: saltar, caminhar agachado, empurrar uma bolinha, abrir uma porta e interromper um movimento.
Isto não significa, no entanto, que os cães simplesmente esqueçam o que vivenciaram minutos ou horas depois. Desde que o estímulo seja reproduzido, eles podem incorporar a ação ao seu cotidiano, adaptando-a às necessidades e desejos (saltar ou agachar-se para escapar de uma cerca, por exemplo).
Por outro lado, quando uma ação não redunda em nenhuma recompensa, os cachorros tendem a eliminá-la da memória. Diversos cães, ao perceberem a inutilidade de abrir a porta, passaram a ignorá-la.
Isto significa que os peludos são capazes de apreender algum ensinamento desde que o gesto proposto tenha algum significado objetivo; mas, mesmo nesta avaliação, os cachorros surpreenderam com as reações.
Dos 17 animais empregados no estudo, cinco eram descritos como “independentes e teimosos”. Todos eles deixaram de repetir o gesto proposto poucos minutos depois do experimento. Os demais, quando convidados, reproduziam até mesmo as ações inúteis.
Ainda não está clara a motivação dos cães, mas, aparentemente, a maioria deles consegue se lembrar e repete gestos aparentemente inúteis, apenas para agradar os tutores. São os animais classificados como amorosos, amigáveis e “com muita necessidade de contato físico” com os tutores.
Os cachorros esquecem?
Não existem estudos sistematizados sobre este assunto. Na convivência com os cachorros, no entanto, a maioria considera que eles não conseguem esquecer nada que tenha sido significativo para eles.
Por exemplo, os cães retêm na memória situações por que passou, boas e más, mesmo depois de alguns anos. Eles podem se ressentir na presença de um antigo tutor que causou maus tratos ou negligência.
A reação varia de animal para animal. A maioria dos cães normalmente se esconde ou foge da presença dos maus tutores, mas parte dos peludos demonstra lembrar e, então, reage de forma agressiva – alguns precisam ser contidos para evitar uma agressão.
Da mesma forma, os cães não se esquecem de pessoas que os ajudaram em situações difíceis. É o caso de pessoas que alimentam ou improvisam abrigos para animais de rua, que são reconhecidas e celebradas nos reencontros.
Para analisar essas situações, no entanto, é preciso pensar do jeito que os cachorros pensam. Em geral, os cachorros são bons avaliadores de caráter e, quando eles não gostam de alguém, quase sempre o motivo é justificado.
Mas existem exceções. Um cachorro que visita o veterinário regularmente claramente consegue se lembrar do médico, mas quase sempre esta memória vem acompanhada de apertos, agulhadas e remédios amargos, que certamente não são boas lembranças.
Mesmo nesses casos, a memória dos cães pode se mostrar mais complexa. Existem diversos relatos de animais que se submeteram a procedimentos dolorosos e, graças a eles, recuperaram a saúde e a mobilidade.
Quando, durante uma internação, os cães recebem atenção, carinho e até mesmo algumas brincadeiras adaptadas, de acordo com as condições físicas dos pacientes, eles são capazes de evocar a figura do médico como um benfeitor, um amigo.
A inteligência dos cães
A memória, como se pode ver, não está relacionada à inteligência dos cães, entendida como a habilidade de dar respostas positivas aos estímulos propostos pelos tutores – pessoas em que eles confiam plenamente.
Os cães teimosos conseguiam se lembrar das ações inúteis, mas recusavam-se a repeti-las. Os mais dóceis, para agradar, faziam o que o tutor estava pedindo. Isto nos leva à classificação da inteligência canina.
Em geral, os rankings de inteligência se baseiam na capacidade de aprendizado dos cães, nas respostas obtidas no adestramento. Muitas vezes, porém, as habilidades ensinadas simplesmente não fazem sentido para os cães.
Considerado o cão mais inteligente entre todas as raças, o border collie foi desenvolvido a partir da caça compartilhada (em que cão e humano partilham o resultado das caçadas). Posteriormente, ele foi adaptado para cuidar de rebanhos e atualmente é adotado principalmente como animal de companhia.
O border collie é muito apegado ao tutor – ele gosta de partilhar experiências com os seus humanos. Este talvez seja o principal motivo para ele aprender tantos truques: é uma forma de conviver e interagir por mais tempo com os membros humanos da família.
O afghan hound, por outro lado, é considerado um dos menos hábeis, quando se trata de adestramento canino. A raça foi desenvolvida nas montanhas do Afeganistão e do Irã, onde os cães eram usados para caça solitária: eles eram soltos, passavam o dia sozinhos e voltavam para o acampamento no fim do dia, trazendo os resultados dos seus esforços.
Apenas por conseguir se orientar, partir para locais de caça e voltar para o acampamento, o afghan hound já deveria ser considerado extremamente inteligente. Expor-se a perigos, retornar para casa e dividir a caça com humanos também diz muito sobre o comprometimento dos cães da raça.
Desta forma, os rankings de inteligência canina parecem considerar apenas o que os humanos querem que os animais façam ou não. No final, o que parece estar sendo avaliado é a utilidade que eles têm para nós, e não a inteligência e habilidades para sobreviver e superar os desafios.