Os cachorros conseguiriam sobreviver sem os humanos? 

Se a raça humana fosse extinta, os cachorros conseguiriam sobreviver? Veja a resposta de alguns pesquisadores. 

Em um exercício de especulação, uma pesquisadora americana e sua equipe procuraram imaginar como seria o mundo dos cachorros sem a colaboração dos humanos. Jessica Pierce é especialista em bioética da Universidade do Colorado e publicou suas conclusões no livro “A Dog’s World: Imagining The Life of Dogs in a World without Humans” (Princeton University Press, 2021). 

De acordo com a especialista, não há dúvidas de que os cachorros conseguiriam sobreviver sem os humanos – seja em função da extinção da nossa espécie, seja por causa de alterações drásticas ocorridas no meio ambiente. 

Os cachorros conseguiriam sobreviver sem os humanos? 

Efetivamente, o nosso desaparecimento poderia ocorrer em uma hecatombe nuclear. Mais provavelmente, no entanto, os problemas estariam relacionados a consequências do aquecimento global: escassez de recursos, eventos climáticos extremos, pandemias causadas por novas (e letais) espécies de micro-organismos, etc. 

Sem a nossa presença, os cachorros estariam por conta própria. Mas a evolução da espécie nos leva a concluir que o Canis lupus familiaris seguiria a sua trajetória, precisando apenas retomar algumas características primitivas e adaptar-se às novas condições de vida: eles precisariam caçar, procurar abrigo, defender-se de outros predadores (e atacá-los), etc. 

A evolução dos cães 

Os primeiros mamíferos surgiram há 200 milhões de anos, em uma época na qual os dinossauros ainda dominavam o planeta. mas os nossos ancestrais mais antigos permaneceram pequenos e em pequeno número pelo menos até a extinção dos grandes répteis, 65 milhões de anos atrás, quando uma grande extinção provocada pelo impacto de um megameteoro destruiu três quartos da vida do planeta. 

Os cachorros entraram para a história muito depois. De acordo com um estudo da Academia Chinesa de Ciências, publicado em 2015, os primeiros C. l. familiaris começaram a circular no planeta há cerca de 33 mil habitantes. Eles eram descendentes diretos do lobo-cinzento (o Canis lupus original). 

Cerca de 15 mil anos depois, a última Era Glacial estava se aproximando do fim. Por um lado, o frio continuava intenso na Eurásia; por outro, o recuo da cobertura de gelo permitiu que os cachorros primitivos passassem a explorar outros territórios. 

Foi então que humanos e cachorros se encontraram: indivíduos das duas espécies precisavam ampliar os territórios de caça e coleta e o estabelecimento da parceria garantiu maiores chances de sobrevivência para ambos. 

Os cachorros conseguiriam sobreviver sem os humanos? 

De lá para cá, o que teve início com uma mera caça compartilhada (nós entrávamos com ferramentas, armas e armadilhas, enquanto os cães ofereciam força, agilidade e rapidez para encontrar e matar as presas) tornou-se uma grande amizade

As duas espécies se espalharam por todo o planeta. Humanos e cachorros atravessaram passagens ainda cobertas por gelo e permafrost e “fizeram a América”, ocupando territórios do Alasca à Terra do Fogo. O H. sapiens deu meia volta e voltou a ocupar a África, enquanto o C. l. familiaris reencontrou o caminho de casa tomando o rumo leste, novamente em direção à China, sul da Ásia e, de lá, para a Oceania. 

Naturalmente, a inteligência humana já era muito superior à exibida pelos cachorros. Por isso, já adaptados à convivência, eles foram treinados não apenas para caçar, mas para conquistar e defender territórios, guardar propriedades, pessoas e outros animais, participar de guerras, expulsar as chamadas espécies daninhas das primeiras lavouras (como as marmotas e os ratos), até chegar ao momento atual. 

Embora muitos cães continuem exercendo funções de trabalho, a maioria atualmente é adotada apenas para companhia. Hoje em dia, existem cada vez menos cães pastores pastoreando, mas eles exercem outras atividades, como apoio em ações policiais, resgates, guia de deficientes físicos e emocionais, etc. 

Se os humanos desaparecessem, a maioria desses ofícios perderia a razão de existir. Nenhum cão precisaria farejar drogas, armas ou materiais contrabandeados em fronteiras, portos e aeroportos, mas é provável que as habilidades desenvolvidas como cães terapeutas, guias, condutores e acompanhantes fossem muito úteis nesta “volta à selva”. 

De volta à selva? 

Não seria exatamente uma volta. Não apenas os cachorros se transformaram na convivência com os humanos. Diversas outras espécies animais (e vegetais) só existem por causa da intervenção humana. É o caso de um trigal, por exemplo, que em nada lembra as espigas mirradas do trigo selvagem. 

Em termos de classificação, o porco doméstico e o javali pertencem à mesma espécie: Sus scrofa. A diferença entre eles é o ambiente em que vivem – e nós selecionamos os indivíduos com pernas traseiras mais musculosas e desenvolvidas: afinal, pernil de porco é uma das nossas preferências gastronômicas. 

Esta é a chamada seleção artificial das espécies (em contraposição à tese da evolução de acordo com a seleção natural, proposta pelo naturalista inglês Charles Darwin). Sob determinadas condições, animais e plantas crescem mais (e mais rápido), aumentam a produção de leite, ovos, lã, etc. 

Cachorros selvagens? 

Sem a tutela dos humanos, os cachorros voltariam a ser mais uma espécie em busca da sobrevivência em plena natureza. Eles fariam companhia a outras espécies, como cavalos, touros e cabras, retirados há mais ou menos tempo do ambiente selvagem. 

Não é possível imaginar em que região os cachorros se concentrariam. A espécie se desenvolveu entre o centro e o sudeste da Ásia, sob temperaturas bem mais baixas do que as atuais. Provavelmente, os cães se concentrariam nas zonas tropicais, com alguns grupos de aventurando por áreas temperadas, como o centro-sul da Europa, o sul da Índia e a região central dos EUA. O frio nas regiões glaciais seria um empecilho para a ocupação dos territórios. 

Tamanhos e cores 

Os cachorros brasileiros, portanto, estariam em boas condições, comparando-se com os primos do norte, do Alasca à Sibéria. É provável que surgissem subespécies, de acordo com as condições topográficas e climáticas, e também com a oferta de alimentos. 

Nem todas as raças caninas teriam a mesma sorte. O tamanho parece não fazer diferença: afinal, um dos menores felídeos doméstico, o gato-selvagem-de-patas-negras, que tem a aparência de um filhote de gato doméstico, é o mais eficaz: 85% dos ataques são efetivos, contra apenas 60% das chances de sucesso alcançadas pelos leões. 

Os cachorros conseguiriam sobreviver sem os humanos? 

Caçar um rato pode ser mais fácil do que tentar abater uma zebra, mas a própria abundância de presas pequenas poderia facilitar bastante a vida dos cachorros de pequeno e médio porte. 

Os grandes poderiam ter mais sucesso na caça, mas enfrentariam problemas na convivência. Muitos pastores se acostumaram a viver isolados (apenas com carneiros ou vacas) e, com isso, se tornaram independentes e territorialistas. 

É possível que as habilidades sociais dos beagles – raça desenvolvida para caçar em bandos – fossem mais úteis do que a persistência e teimosia dos mastins napolitanos, rottweilers e akitas, em um mundo sem humanos. 

A pelagem também poderia interferir. Em áreas com vegetação densa, o pelo longo poderia se tornar um obstáculo, enroscando-se em arbustos e atrapalhando saltos e escapadas. A pelagem clara poderia denunciar a presença do predador em uma pradaria ou savana, onde os cachorros malhados teriam mais chances de êxito – tanto para caçar, quanto para se ocultar de outros animais. 

Todas as espécies de lobos apresentam cabeça dolicocefálica: o crânio é longo e estreito, afinando-se em direção à trufa (a ponta do nariz, onde estão as narinas). É o mesmo formato da cabeça do lulu da Pomerânia e do afghan hound. 

Diversas raças caninas desenvolveram outras características. A cabeça mesocefálica, por exemplo, deve ter parecido menos perigosa e violenta e, por isso, vários cães mantiveram este formato, como o cocker spaniel e a maior parte dos terriers. 

Em um mundo sem humanos, no entanto, teriam grandes problemas os cachorros braquicefálicos – de focinho achatado. É o caso dos pugs, lhasa apsos, shih tzus, cavalier king charles spaniel, pequineses, dogues de Bordéus, buldogues (franceses e ingleses) e boxers. Alguns deles já enfrentam problemas de saúde. 

Com focinhos curtos, estes cães quase sempre apresentam problemas respiratórios. Com o avanço da idade, eles podem desenvolver insuficiência cardíaca e respiratória. O crânio de um pug não se parece nem um pouco com o de qualquer outro cão. 

Provavelmente, eles não sobreviveriam sem os humanos, tendo de caçar para se alimentar e correr para fugir dos agressores. Mas nada indica que, sem a nossa intervenção, as raças caninas teriam vida longa. São os humanos que valorizam determinada aparência nos cães. 

Talvez, antes que as limitações e deficiências colocassem as populações de cachorros em risco, os cruzamentos dessem conta de eliminá-las – afinal, ninguém mais lucraria com a criação de cães muito pequenos, frágeis e muitas vezes portadores de doenças. 

Sem cruzamentos seletivos, os cachorros gradualmente passariam a exibir um novo fenótipo. Esta espécie seria semelhante aos lobos cinzentos, os ancestrais diretos dos nossos melhores amigos? É impossível dizer. 

O certo é que, juntamente com outros milhares de espécies de mamíferos, além de outros milhões de espécies animais, os cachorros encontrariam um roteiro seguro para seguir a própria evolução, convivendo, colaborando ou competindo com outras espécies. 

A nossa espécie, por outro lado, ampliou a inteligência e desenvolveu tecnologias fantásticas: basta dizer que, apenas 30 anos atrás, sair com um computador no bolso para acessar bilhões de dados diferentes de qualquer lugar era apenas ficção científica. 

Ironicamente, somos também os únicos capazes de comprometer a sobrevivência da espécie – e de algumas outras. Os pesquisadores são unânimes em dizer que os cachorros seriam capazes de sobreviver sem a nossa presença. E nós, somos capazes de garantir a sobrevivência da nossa espécie? 

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