De acordo com o vocabulário, o termo “racional” é usado para descrever o ser que pensa, é dotado e faz uso da razão. Nos últimos dois séculos, os seres classificados como racionais são exclusivamente os humanos, em contraposição a todos os demais animais, inclusive os cachorros e outros pets, categorizados como irracionais: apenas reagem aos estímulos do meio em que estão inseridos.
Mas a inteligência não é uma prerrogativa humana. Convivendo com cães há alguns milênios, todos nós podemos identificar inteligência e racionalidade em muitas de suas atitudes. Isto ocorre também com outros animais, mas os cachorros estão presentes em nosso cotidiano e, por isso, fica mais fácil deparar-se com comportamentos racionais.
Instinto e inteligência
A partir do século 19, a ciência humana desenvolveu os critérios de instinto e inteligência. O primeiro seria uma forma rudimentar (e repetitiva) de executar as tarefas cotidianas. A inteligência, por outro lado, estaria restrita aos “seres racionais”.
Um conceito romano antigo chegou a ser empregado para designar humanos e os outros animais: “anima nobili” e “anima villi” – almas nobres (nós) e almas vis (todos os outros animais, inclusive os cães). Estes termos chegaram até mesmo a justificar experimentos científicos dolorosos, como vivissecções, ignorando que as sensações, emoções e a capacidade de prever são comuns a todo o Reino Animal.
Seres sencientes
A divisão entre racionais e irracionais já foi aposentada há algum tempo. Atualmente, a biologia reúne todos os seres no Domínio da Vida, que, por sua vez, é subdividido em cinco reinos: Animal, Vegetal, Fungi (que abrange os bolores, leveduras e cogumelos, inclusive os microscópicos), Monera (das bactérias e arqueias, os seres mais primitivos e também os mais numerosos no planeta) e Protista (dos seres que não se enquadram nos demais reinos).
Os sencientes são aqueles que, em alguma medida, sentem dor, medo, raiva, tristeza e alegria, prevendo as circunstâncias em que as sensações e emoções são desencadeadas e buscando meios para evitá-las ou provocá-las. Todos os seres, dos vermes e moluscos as aves e mamíferos, são capazes de tudo isso. Naturalmente, os cães também são seres sencientes.
Evidências
Frans Waal, um primatologista holandês radicado nos EUA, publicou em 2022 o livro “Somos tão inteligentes para saber quão inteligentes são os outros animais?”. Lançado no Brasil pela Editora Zahar. O texto faz uma profunda reflexão sobre o tema, apresentando dezenas de situações que evidenciam os cães e diversas outras espécies como seres racionais. Confira os exemplos a seguir.
- Os polvos sabem usar cascas de coco para se proteger. Moluscos sem concha, eles coletam cascas nas praias como estratégia que atrapalha a vida dos predadores. Mais recentemente, com a poluição crescente do mar, eles também aprenderam a usar alumínio, vidro e até plástico.
- O bernardo-eremita é um caranguejo desprovido do exoesqueleto. Para se aventurar nos leitos dos mares, os indivíduos da espécie predam outros caranguejos, alimentando-se da carne e protegendo-se com a carapaça vazia. Eles inventaram uma armadura eficiente tanto para a defesa, quanto para o ataque.
- Ao contrário da maioria dos pássaros, a salangana, uma andorinha nativa da China, não dispõe de gravetos e folhas em seu habitat. Para construir os ninhos, ela aprendeu a sugar a seiva de algumas plantas, regurgitá-la e tecer delicados abrigos para os filhotes. Infelizmente para a espécie, os humanos aprenderam que ninhos de salangana são iguarias deliciosas.
- Já o brasileiríssimo joão-de-barro tem muita matéria prima à disposição. Por isso, ele desenvolveu diferentes técnicas de construção para os ninhos, cuja abertura é sempre voltada para o norte, de onde sopram os ventos quentes. A ave também aprendeu a prever a intensidade do frio no inverno, deixando a porta do ninho maior ou menor, de acordo com as condições climáticas. Muitos lavradores se baseiam nas casas do joão-de-barro para dar início às novas semeaduras: quando a porta se alarga, o inverno está chegando ao fim.
- O golfinho-corcunda parece gostar de estados alterados de consciência. Já foram observados bandos de animais, na costa da Austrália e do Quênia jovens “brincando” com baiacus. Em seguida, os animais se mostram um pouco desorientados, mas muito relaxados. Eles passam a nadar com o focinho para cima, aparentemente extasiados com o reflexo da própria imagem na superfície da água. Os baiacus secretam tetrodotoxina, uma substância tóxica que pode ser fatal para humanos, mas causa apenas uma “brisa leve” nestes cetáceos”.
- Já o golfinho-nariz-de-garrafa apresenta hábitos mais saudáveis, mas igualmente curiosos. Espalhado por toda a costa brasileira, ele vive em grandes bandos e gosta de interagir, curioso, com as embarcações humanas (ele eventualmente, ele vira uma delas). No litoral de Santa Catarina, alguns animais da espécie foram vistos escorregando na areia das praias. O gesto não é funcional, o que leva os pesquisadores a compreenderem que os golfinhos estão literalmente brincando – na natureza, isto significa desperdiçar energia sem nenhum ganho prático de alimentação, abrigo ou proteção, por exemplo. Estes cetáceos querem apenas se divertir. É uma espécie de surfe às avessas.
- Formigas, abelhas e cupins são especialistas em agricultura: eles cultivam fungos em galerias para alimentar toda a comunidade – e começaram a fazê-lo muito antes que os humanos compreendessem a utilidade de um arado ou uma pá. Estes insetos também “trocam mercadorias” e até doam, fazendo alianças para garantir a segurança do território de coleta – e até para invadir outros territórios.
- Um grupo de gorilas que habitam a Tanzânia, junto da floresta equatorial africana, foram estudados durante mais de uma década pela equipe do primatologista japonês Toshisada Nishida. Eles descobriram que o alfa da comunidade durante quase dez anos escolheu uma nova forma para manter o poder: estocar alimentos e oferecê-los para outros grupos vizinhos, mas negando para todos os adversários (raptores de fêmeas e invasores de áreas de caça e coleta). Ele não usava a agressividade, colocando por terra a tese de que, na natureza, sempre vale a lei do mais forte).
E os cachorros?
Os exemplos colhidos na natureza se apresentam em número muito inferior ao repertório construído pelos cachorros. Mas, talvez por serem nossos companheiros de longa data, o aprendizado canino não desperta interesse semelhante. Além disso, muitos de nós ainda insistem que eles são “irracionais”.
A seguir, relacionamos alguns exemplos da racionalidade canina, que afasta os peludos do mero instinto – a inteligência rudimentar que faz os animais procurarem abrigo, alimento, parceiros sexuais e segurança. É possível observar algumas destas evidências no dia a dia.
- Os cachorros aprendem rapidamente a fazer as necessidades no “lugar certo”, que, para eles, não existe: o tapete higiênico, os canteiros do jardim e o tapete da sala de estar lhes parecem igualmente bons. Mas, raciocinando, eles percebem que usar o jornal ou o tapetinho agrada os tutores. Além de nos amarem incondicionalmente, eles sabem também que nós somos a fonte do alimento, agasalho, cafuné, etc.
- Mesmo um cão de caça consegue aprender a diferenciar presas de animais domésticos. Uma matilha recém-chegada de uma expedição em busca de javalis pode descansar tranquilamente ao lado (e, às vezes, embaixo) de um gato. Bem adaptados, eles exibem os mesmos gestos com outros pets, inclusive aves e roedores. É preciso raciocinar para discernir entre um animal de estimação e uma presa.
- Na vivência com os humanos, os cachorros desenvolveram linguagens complexas. O repertório é muito mais variado do que o observado em lobos, por exemplo. Além disso, por imitação (mais uma forma complexa de aprendizado), eles aprenderam a alterar a fisionomia para se expressar. São gestos com a cabeça, as orelhas, as sobrancelhas e o focinho que sinalizam informações diferentes.
- Os peludos não desenvolveram uma linguagem oral, apesar de os latidos já serem sofisticados também entre lobos e raposas. Em uma alcateia, por exemplo, não existem dois lobos com o mesmo tipo de uivo: quando alguém “fala”, todos os membros sabem quem está se comunicando. Mas os cachorros, aliando latidos, rosnados, uivos, ganidos e choramingos com posturas corporais e fisionomias, ampliaram grandemente o repertório, tornando as informações mais precisas.
- Mesmo sem usar uma linguagem oral articulada (que, vale lembrar, é uma característica humana), os cachorros são capazes de compreender o significado de muitas palavras e expressões. Já é surpreendente quando um peludo entende o significado dos comandos (“fica”, “vai”, “sim”, “não”, “sobe”, “desce”, etc.), mas alguns cães compreendem o significado de até 1.000 palavras (o vocabulário de uma criança de dois anos). Aliás, assim como os cachorros, a maioria das crianças pequenas enfrenta dificuldade para entender os antônimos (subir e descer, acender e apagar, etc.). são palavras diferentes para o mesmo gesto, apenas em sentido inverso.
Além do aprendizado obtido com o adestramento, os cachorros são capazes de adaptar o conhecimento. Um cachorro acostumado a pegar o jornal para o tutor pode pegar também os chinelos apenas ao ouvir o mesmo comando e perceber, em seu campo de visão, o único objeto diferente e inusitado, que não deveria estar lá.
Eles também sabem manter a urgência de uma caçada em muitas outras ocasiões, como resgate de vítimas, perseguição a suspeitos ou simplesmente participar de uma corrida.
Historicamente, sempre se considerou que a consciência das experiências pessoais (e, portanto, a reflexão sobre estas situações e adaptação para atividades semelhantes) era um atributo exclusivamente humano. Com as observações controladas, descobriu-se que a habilidade também está presente em outros primatas superiores (gorilas, chimpanzés e orangotangos). Na sequência, foi a vez dos cetáceos (baleias e golfinhos) e animais domésticos de estimação (cavalos e cachorros).
As mentes
O leitor pode estar se perguntando: “todos esses exemplos são muito simples, onde está o raciocínio?”. O raciocínio é sempre simples, mas é também cumulativo. Um galho comprido e resistente é um utensílio ideal para derrubar frutas, mas também serve como alavanca e até mesmo como arma.
É inegável que a inteligência humana é muito mais complexa e sofisticada, mas é importante não esquecer que nós estamos acumulando conhecimento e tecnologia há vários milênios – e, no começo, quando disputávamos a hegemonia com outros humanos (H. erectus, H. neanderthalensis e H. denisovanus), tudo era muito simples.
Nos primeiros anos, uma criança elabora estratégias fundamentais para a vida em atitudes que consideramos simples e triviais, como respirar, sustentar-se sobre as pernas, caminhar e correr, etc. Tudo é aprendizado e exige esforço, tentativa e erro, repetição, evocação na memória, etc. Isto é a racionalidade, que, em si, é neutra: não é positiva nem negativa.
Racionalidade e irracionalidade: alguns motivos
Nos últimos 500 anos, a humanidade foi desalojada do seu local exclusivo de “centro do mundo”, pelo menos no Ocidente. “Ocidente” significa apenas “oeste”, mas a palavra foi empregada para designar as regiões do Império Romano (que ruiu em 476) que abrangiam a Itália, a França, a Bretanha e o lado ocidental da Alemanha, em contraposição ao Império do Oriente (o leste), com sede em Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), que englobava a Grécia, os Bálcãs, a Turquia e o Oriente Médio. Este império resistiu durante outros 1.000 anos, até 1453.
Na época das Grandes Navegações, a partir do século 15, “Ocidente” passou a abranger também as Américas – o território, em maioria, era composto por colônias europeias. Já no século 15, a astronomia deslocou o centro do mundo para o Sol – e a Terra, com os orgulhosos humanos, passou a ser apenas mais um planeta girando da imensidão.
O progresso da astronomia mostrou que nem mesmo o Sol é o centro do universo: é apenas uma estrela, entre os bilhões de astros que formam a Via Láctea, com seus séquitos de planetas, cometas e satélites. E a Via Láctea é apenas uma das galáxias que formam o universo.
No microcosmo, os humanos paulatinamente se tornaram uma espécie a mais entre os habitantes do planeta. Ainda hoje, algumas espécies são totalmente desconhecidas, enquanto outras seguem a vida sem nenhuma relação direta com a humanidade.
O planeta deixou de ser o centro do universo e nós deixamos de ser os senhores da criação. Cada um de nós é livre para acreditar em qualquer religião e cosmogonia, mas, efetivamente, somos inquilinos da Terra, e somente enquanto ela continuar fornecendo condições de vida para a nossa espécie.
Restou então a inteligência. A ciência mostrou a nossa posição real, mas os humanos – cientistas e não cientistas – mantiveram uma reserva, uma “alma especial” para nos diferenciar dos demais animais.
Apesar de não haver evidências científicas – inclusive porque o assunto foge ao escopo da ciência – é possível que nós sejamos dotados de um espírito imperecível, que escapa ao tempo e ao espaço. Mas, se há realmente alguma diferença, ela reside em aspectos imensuráveis da vida, e não em corpos e mentes materiais.
Naturalmente, é incontestável que a inteligência humana se destaca em relação a de todos os demais: mesmo os cetáceos e os primatas superiores estão muito aquém das nossas realizações. Isto não significa, no entanto, que a racionalidade seja um atributo específico. Cães, gatos, cavalos e outros animais domésticos e selvagens também são dotados de razão: somos todos racionais, apesar de as prioridades serem muito diferentes.