Por que os cães são tão sociáveis?

A resposta parece óbvia, mas foram encontradas alterações que podem explicar o comportamento.

Cientistas das universidades de Princeton e de Oregon (EUA) estudaram alterações genéticas nos cachorros, em relação aos seus ancestrais selvagens, que podem explicar os motivos por que os cães são tão sociáveis em relação aos humanos. Na verdade, os nossos peludos demonstram hipersociabilidade.

As relações entre humanos e cachorros começaram a se estabelecer há algumas dezenas de milhares de anos e esta aproximação é uma das responsáveis pela evolução das duas espécies. Sem os cães por perto, nós seríamos muito diferentes.

Por que os cães são tão sociáveis?

Nossa história

A explicação tradicional é que os lobos mais dóceis se aproximaram de grupos de caçadores, em busca de restos de alimento e do calor das fogueiras. Paulatinamente, estes animais se afastaram tanto que se estabeleceram em uma nova espécie: Canis lupus familiaris, sempre sociáveis e fiéis.

A domesticação teria acontecido desta maneira. Os humanos se espalharam pelo globo e levaram junto os seus amigos inseparáveis. O que não se sabia até agora é por que os cães se tornaram tão sociáveis. Agora, pesquisadores americanos sugerem que os motivos reais estão nos genes – e a explicação é um pouco diferente da tradicional.

Inicialmente, lobos e homens teriam tirado vantagem da aproximação. Eles teriam aproveitado os restos de alimentos, relativamente abundantes nos acampamentos, e nós teríamos obtido companheiros fortes e leais, equipados com garras e dentes para eliminar um número cada vez maior de presas.

O fenótipo dos ancestrais dos cachorros passou por transformações: a cabeça foi reduzida, os olhos se apertaram, a cauda passou a ser portada baixa e as orelhas ficaram mais caídas, conferindo uma aparência de eternos filhotes, nada amedrontadores. O comportamento também mudou, provavelmente em função da relação próxima com os humanos.

A nova hipótese

De acordo com os dados obtidos pela equipe de Princeton e Oregon, no entanto, a história ocorreu de outra forma: os protocachorros (os avós dos nossos peludos) não foram selecionados por um conjunto de habilidades cognitivas, incluída a capacidade de entender palavras e gestos.

Os primeiros “lobos domésticos” é que teriam procurado a companhia humana, basicamente em função de uma alteração genética, que começou a diferenciá-los dos lobos selvagens. Para os pesquisadores, de maneira fortuita, os cachorros exploraram a necessidade humana de ter um caçador mais eficiente ao lado.

Eles exploraram este traço de personalidade, tornando-se sociáveis. Em tempos de temperaturas baixas – estávamos em plena última Era do Gelo – a união dos esforços de cães e humanos foi fundamental para a sobrevivência.

A equipe de Princeton deste novo estudo é coordenada por Bridgett von Holdt, professora de biologia evolutiva, que é coautora do artigo publicado na revista Sciences Advances.

A seleção dos cães para formar a parceria teve origem no DNA. As bases genéticas que diferenciam lobos e cachorros ainda são pouco compreendidas, mas talvez a aproximação das duas espécies tenha sido resultante da primeira seleção artificial: apenas alguns animais, entre os lobos – justamente os que eram geneticamente propensos à maior sociabilidade – são os ancestrais de todos os cachorros atuais.

E os nossos peludos, hoje em dia, portam na sua herança genética a informação contida no DNA ancestral, transmitida de geração para geração. É o que afirma Monique Udell, pesquisadora de comportamento animal da Universidade Estadual de Oregon, que liderou o estudo juntamente com von Holdt.

Na fase inicial da domesticação, a ideia original é que os cachorros desenvolveram uma habilidade avançada de cognição social, mas esta já está presente de forma rudimentar nos lobos, que também se organizam em grupos hierarquizados (as alcateias); portanto, não consegue explicar a formação da dupla.

Os cachorros, desde o início da parceria, apresentam uma condição genética que os leva a ter uma motivação exagerada (comparada aos lobos) a procurar o contato social não apenas para a sobrevivência, mas para agradar e fortalecer vínculos.

Ainda de acordo com Udell, que chefia o Laboratório de Interação Humana-Animal da Universidade de Oregon, este é o primeiro estudo que integra análises de dados genéticos e comportamentais, para investigar as alterações ocorridas durante a domesticação.

O início da pesquisa

O trabalho de von Holdt e Udell teve início sete anos da publicação dos resultados, em 2017, para buscar nos genes respostas que explicassem a hipersociabilidade canina. O senso comum diz que “o cachorro é o melhor amigo do homem” – e os peludos chegam ao ponto de sacrificar-se para garantir o bem-estar e a segurança dos humanos.

As pesquisadoras montaram a equipe com técnicos das duas universidades e selecionaram 18 cães (alguns de raça pura, outros mestiços) e dez lobos-cinzentos nascidos em cativeiro, criados por uma instituição de preservação e pesquisa sediada no Estado de Indiana.

A primeira constatação é que os cachorros se mostraram muito mais amistosos do que os lobos, mesmo estes tendo nascido e crescido em um ambiente controlado por humanos. Os animais das duas espécies faziam festa para os visitantes, mas os cachorros continuavam interagindo por muito mais tempo, mesmo na presença de pessoas estranhas.

A síndrome

O comportamento inicial dos lobos e cachorros fez os pesquisadores associarem a conduta dos cães com a síndrome de Williams-Beuren, um transtorno que faz as pessoas se sentirem amistosas e confiantes em quaisquer situações.

Os primeiros casos da síndrome foram relatados, no início da década de 1960, em estudos independentes: J. C. P. Williams na Nova Zelândia (1961) e A. J. Beuren na Alemanha (1962). Os primeiros casos foram identificados em crianças com dois indicativos:

• hipercalcemia idiopática na lactância – é o excesso de cálcio ou vitamina D, identificado em recém-nascidos que ainda estavam sendo amamentados;

• estenose aórtica – é o estreitamento da aorta, principal da válvula do principal vaso sanguíneo ligado ao coração, o que reduz o fluxo do sangue.

Williams e Beuren sugeriram, à época, que se tratava de uma síndrome ainda não reconhecida. Posteriormente, a condição revelou outros possíveis sinais: estrabismo e anomalias dentárias.

O fato mais surpreendente, no entanto, é o comportamento sempre alegre e amigável. A atitude se traduz na expressão fisionômica dos portadores da síndrome, que progressivamente se torna mais vivaz e confiantes, mesmo em situações adversas. A síndrome já foi considerada o oposto do autismo.

Indivíduos com a síndrome são bastante extrovertidos, empáticos e interessados em manter contato visual prolongado. Também tendem a ser mais ansiosos e podem apresentar deficiências moderadas de aprendizagem.

Entre os humanos, estima-se que a incidência da síndrome de Williams-Beuren seja de um para 13,7 mil a 25 mil nascidos. Não há predomínio de sexo, etnia ou procedência geográfica. Estudos indicam que a deficiência cardíaca seja progressiva. Além disso, os portadores apresentam infecções urinárias recorrentes, transtornos gastrointestinais e limitação progressiva da movimentação das articulações, em função da hipercalcemia.

De volta aos cães

A conduta natural dos cães – confiante, leal e amigável, mesmo sob condições adversas – determinou a investigação sobre uma possível associação com a síndrome de Williams-Beuren. O distúrbio, em humanos, está relacionado a perda de parte do cromossomo 7 e Bridgett von Holdt concentrou as análises da pesquisa nesta seção – que, nos cães, corresponde ao cromossomo 6.

A cientista já havia analisado o cromossomo 6 dos cães em estudos anteriores e descobriu que esta seção, que tem importância fundamental da evolução canina. Von Holdt decidiu investigar se a alteração genética seria responsável pela hipersociabilidade dos cachorros.

O desenvolvimento

Os primeiros testes do estudo se concentraram na análise do comportamento. Foram realizados dois experimentos:

• um voluntário entrava em uma sala em que o animal há havia sido introduzido, com uma caixa contendo salsicha. Foi dado um prazo de dois minutos para avaliar a conduta: os cães foram mais propensos e encarar o humano, ignorando a embalagem, como se esperassem explicações. Os lobos executavam prontamente a tarefa – abriam a caixa e alcançavam o conteúdo;

• um voluntário se sentava em um círculo desenhado no chão e tomava duas atitudes. Na atitude ativa, o humano chamava o animal pelo nome e encorajava-o a estabelecer contato. Na passiva, o humano apenas ficava sentado, ignorando ou cão ou o lobo. Todos os animais se aproximaram rapidamente, mas os lobos se afastavam poucos segundos depois, enquanto os cachorros permaneciam com o humano, independente de terem sido estimulados.

O segundo teste consistiu em análises do DNA. Os pesquisadores identificaram grandes variações no sequenciamento dos cães e, em menor grau, dos lobos. Havia partes do cromossomo inseridas, duplicadas e deletadas.

De acordo com von Holdt, os portadores da síndrome de Williams-Beuren também apresentam diferenças significativas na mesma região e acredita-se que estas alterações determinem a severidade dos sinais clínicos e laboratoriais, bem como dos traços de personalidade.

O estudo concluiu que os cães apresentam variações no sequenciamento do DNA muito mais amplas do que os lobos. Os cachorros mais amistosos (em relação aos humanos) são os que apresentaram anomalias no gene que forma a proteína GIF21, que regula a atividade de outros genes.

Uma frequência menor de alterações na proteína GIF21 parece estar relacionada a um comportamento mais distante e desconfiado, semelhante ao observado nos lobos. Em um estudo anterior, von Holdt havia manipulado ratos geneticamente, que se tornaram mais sociáveis ao produzir uma quantidade maior da proteína.

O estudo demonstra também que os cães continuam evoluindo, uma vez que as alterações no cromossomo 6, apesar de patentes em todos os animais testados, é mais evidente em alguns indivíduos – justamente aqueles com maior probabilidade de conviver durante muito tempo com humanos e, ao menos em tese, gerar descendentes.

As novas evidências sugerem que os cães apresentam uma condição genética específica, que os leva a uma motivação exagerada para estabelecer contato social. A herança genética se perpetuou, uma vez que os peludos atuais são todos descendentes dos protocachorros, com alguns cruzamentos eventuais com lobos, em alguns momentos da nossa história comum.

Lealdade

Um estudo, publicado em 2017 na revista Current Biology, constatou que, assim como os humanos e demais primatas, os cachorros e lobos também reagem a situações consideradas injustas.

Uma pesquisa da Faculdade de Medicina Veterinária de Viena (Áustria) demonstrou que cachorros e lobos se recusaram a cooperar com os pesquisadores, em um experimento no qual apenas um animal, apresentado sempre em dupla, recebia um petisco como recompensa. A maioria dos voluntários se recusava a receber o prêmio mesmo quando o petisco era menor do que o oferecido para o parceiro.

De acordo com os autores do estudo, esta constatação indica que a sensibilidade (e reação) à desigualdade é genética e não fruto da domesticação, uma vez que a característica está presente tanto nos cães, quanto em seus ancestrais que se mantiveram distantes dos humanos.

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