Os avanços científicos que visam à cura do câncer são impressionantes. Há menos de 40 anos, um diagnóstico de neoplasia quase sempre equivalia a uma sentença de morte. Hoje em dia, foram desenvolvidas diversas terapias visando ao prolongamento da vida com qualidade. A boa notícia mais recente é que os cães podem ter a chave para a superação da doença.
Desde os anos 1990, o mapeamento genético vem promovendo verdadeiras revoluções na medicina. Sabe-se que o desenvolvimento de tumores é determinado por alguns genes específicos. Este estudo americano concluiu que cães e humanos compartilham sequências genéticas responsáveis pelo surgimento de diversos tipos de câncer.
A oncologia comparativa
O estudo surgiu nos anos 2010 e reuniu pesquisadores de diversas universidades e institutos de pesquisa dos EUA – entre eles, Harvard (Massachusetts), Penn (Pensilvânia), Yale (Connecticut) e UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles).
Desde 2020, o estudo conta com o apoio oficial, inclusive financeiro, do NIH (National Institute of Health). Através do Cancer Moonshot, uma iniciativa da Casa Branca (sede do executivo americano).
“Moonshot” é um termo em inglês cuja tradução literal é “tiro à Lua”. A expressão se popularizou na década de 1960, com a Missão Apolo, cujo objetivo principal era levar uma astronave tripulada para o satélite natural da Terra. Desde então, “moonshot” passou a significar qualquer projeto ambicioso.
Oncologia comparativa é o ramo de medicina que trata dos vários tipos de câncer e pesquisas possíveis intervenções terapêuticas. O projeto teve início com comparativos sobre a incidência de várias neoplasias em diferentes etnias e condições objetivas (clima, poluição, etc.).
Os cachorros e o câncer
Não existem dados previstos para o Brasil, mas, nos EUA, cerca de quatro milhões de cães são diagnosticados com câncer a cada ano. Na maioria dos casos, os tumores são semelhantes aos que acometem os humanos.
A explicação é simples: cães e humanos partilham os mesmos ambientes há milênios e as duas espécies se espalharam por todas as regiões do planeta a partir da Eurásia, o supercontinente que engloba a Ásia e a Europa.
Além disso, nós compartilhamos características anatômicas: somos cordados e mamíferos. O avanço da civilização fez humanos e cachorros dividirem os mesmos lares e alimentos. Até hoje, mesmo no caso das rações específicas, elas são produzidas com ingredientes fornecidos pelas mesmas criações e plantações.
Nós igualmente estamos submetidos a diversos agentes carcinogênicos. A poluição ambiental, agravada nos últimos 200 anos, provocou a degradação do solo, do ar e dos recursos hídricos. O câncer é uma doença (ou conjunto de doenças) geneticamente determinada, mas fortemente influenciada por outras condições, que incluem a interação com o ambiente.
Nas palavras de Elaine Ostrander, geneticista líder do NIH, “Os cães vivem em nosso mundo. Eles contraem as mesmas doenças que nós: comem a nossa comida e estão expostos aos mesmos poluentes ambientais. Além disso, também têm os mesmos genes que os tornam suscetíveis a tudo que contraímos, seja câncer, diabetes ou doenças musculares”.
De acordo com a pesquisadora, é mais fácil estudar os genes dos cães do que dos humanos porque, especialmente nos últimos 200 anos, eles foram criados para enfatizar determinadas características, como o tipo de pelagem e o formato do focinho.
Durante milênios, houve algumas variações sutis, já que a maioria dos peludos atuava na caça e na defesa. Quase todas as raças atuais foram estabelecidas a partir da Era Vitoriana. Isto significa que um número muito pequeno de genes é responsável pelas principais diferenças.
Até o momento, o estudo americano envolveu 671 cães de 96 raças que tiveram diagnóstico de câncer. No total, foram avaliados 23 tipos de tumores cuja incidência ocorre tanto em cachorros, quanto em humanos.
Na última década, a oncologia comparada destacou semelhanças genéticas entre tumores caninos e humanos em linfomas (sangue e linfa), osteossarcomas (ossos), hemangiossarcomas (vasos sanguíneos), melanomas (pele) e gliomas (cérebro).
O câncer
Um estudo muito interessante identificou as diferenças entre as orelhas dos cachorros. Várias raças foram desenvolvidas com orelhas eretas, enquanto outras apresentam orelhas grandes e pendentes.
Descobriu-se que o responsável por estas alterações é o gene MSRB3: é ele que determina a atenção das orelhas erguidas de um pastor alemão, o charme e elegância das orelhas caídas de um cocker spaniel ou os relativamente imensos apêndices de um papillon, cujas orelhas parecem prontas para sair voando a qualquer momento.
O problema é que, quando os criadores perseguem exaustivamente esta característica, o número de cães com problemas auditivos cresce proporcionalmente. E, quando o MSRB3 sofre mutações na espécie humana, ele também determina a surdez.
No caso do câncer em humanos, o gene mutado com mais frequência é o TP53, também presente em quase 25% dos casos de tumores em cachorros. Entre nós, a síndrome de Li-Fraumeni, determinada pela mutação, determina que 90% da população afetada desenvolverá neoplasias.
Isto também ajuda a explicar por que alguns tipos de câncer também incidem sobre crianças e adolescentes. O aumento do número de diagnósticos foi creditado, durante muito tempo, principalmente ao aumento da longevidade, mas a explicação é insuficiente (ou errada) nos casos de jovens.
Algumas raças caninas desenvolvem certos tipos de câncer com maior frequência, o que torna mais fácil, para os pesquisadores, identificar os genes relacionados à neoplasia. O terrier escocês, por exemplo, apresenta cerca de 20 vezes mais probabilidade de sofrer de um câncer na bexiga, na comparação com a média da incidência em cães sem raça definida (SRD).
No caso dos humanos, a identificação não seria tão simples. Avaliando uma grande amostra de pacientes com câncer na bexiga, os pesquisadores teriam de lidar com mutações em genes determinadas por fatores múltiplos, como efeitos ambientais e cargas hereditárias desconhecidas.
Observando várias raças caninas e suas especificidades, os pesquisadores obtêm histórias muito mais simples. A partir da avaliação inicial, é possível identificar os genes que sofreram mutações determinantes de diversas condições, inclusive o câncer.
O câncer é o crescimento e a multiplicação desordenados das células de um determinado órgão ou tecido, que formam os tumores. Ele é sempre determinado por uma mutação genética, mas a incidência é potencializada por fatores ambientais, hábitos alimentares, substâncias que alteram a consciência, etc.
Os cachorros forneceram a chave genética que explica por que as células passam a se multiplicar irregularmente. Com isso, é possível começar a desenvolver terapias que atuem na neutralização dos genes “defeituosos”.
Todos os nossos tecidos se regeneram em velocidades diferentes: enquanto as células da mucosa gástrica são substituídas a cada 15 dias, a maior parte dos neurônios consegue sobreviver por décadas desempenhando as suas funções.
O problema, portanto, não está na multiplicação celular, mas na velocidade em que ela ocorre. Ao identificar os genes associados ao desenvolvimento de diversas neoplasias, os estudos podem se voltar para técnicas eficientes para isolá-los e neutralizá-los.
De acordo com o NIH, metade da população humana desenvolverá, durante a vida, alguma forma de câncer. Na metade desses casos, ocorrem metástases, que são tumores desenvolvidos em outras áreas do corpo para onde células tumorais foram levadas pela corrente sanguínea.
Identificar o gene responsável pelos tumores primários e secundários é a chave para transformar o tratamento oncológico. A imunoterapia e o mais recente Car-T cell são terapias muito mais eficazes, que partem do princípio da intervenção em nível celular do sistema imunológico dos pacientes.
Uma vez identificado o gene responsável, cientistas podem extrair algumas células de defesa e alterá-las para que passem a atacar apenas as células mutadas (que causam a multiplicação acelerada e, consequentemente, os tumores).
Este pequeno exército de células defensoras (o Car-T cell) vem se mostrando muito eficiente no combate a neoplasias. A técnica já está sendo adotada inclusive no Brasil, em alguns hospitais universitários, com resultados extremamente satisfatórios.
A terapia ainda é experimental. Ela vem sendo aplicada apenas em pacientes em estágio terminal de diversos tipos de câncer, com a presença agressiva de metástases. O estudo contínuo da genética pode tornar o Car-T cell um procedimento cotidiano, assim como já ocorre com a imunoterapia.
A partir da chave genética fornecida pelos cachorros, os tratamentos contra o câncer tendem a se tornar menos invasivos, com menos efeitos nocivos e, principalmente, com muito mais eficiência. Ao que tudo indica, estamos chegando aos últimos capítulos de uma história em que o câncer sempre foi um vilão muito temido.