No Brasil, de acordo com o censo 2021 do IBGE, os pets estão presentes em mais de metade dos lares: são 54 milhões de peludos e, entre os cães, 42% não têm raça definida: são os populares vira-latas. O termo foi criado para referir-se a animais abandonados, que passam os dias revirando lixeiras em busca de alimento, mas hoje em dia é usado para designar qualquer cão ou gato mestiçado.
Talvez o principal atrativo dos cães vira-latas seja o fato de que, por serem descendentes de acasalamentos espontâneos, que se repetem a cada geração, os peludos somam características de diversas raças que os tornam únicos.
Podem ser encontrados vira-latas em diferentes portes, com pelagens de cores e texturas as mais variadas, que podem ser curtas, longas, lisas, encaracoladas e crespas – muitas vezes, todas as variedades podem ser observadas em um único animal.
01. Fatores genéticos
Ao adotar um filhote, o tutor incorpora à família uma verdadeira caixinha de surpresas: ele provavelmente terá traços semelhantes aos dos pais – ou, pelo menos das mães, no caso de animais semidomiciliados, que têm uma família humana, mas acesso livre às ruas; nestes casos, os macho reprodutores quase sempre são desconhecidos.
Mesmo assim, genes recessivos de ancestrais podem se encontrar e proporcionar a manifestação de características muitas vezes surpreendentes. O processo é idêntico ao de uma avó de cabelos ruivos e olhos azuis que revê estas características apenas nos netos e bisnetos.
Mas a genética não determina apenas o fenótipo. Ao selecionarem cães com as características desejadas, os criadores dos séculos 18 e 19 incluíram no pacote os genes responsáveis por uma série de doenças. É o caso da displasia de quadril nos cachorros de grande porte e das otites nos animais orelhudos.
As doenças genéticas podem ocorrer em qualquer acasalamento, mas os vira-latas ganham uma proteção extra, já que os genes associados a alergias, distúrbios oculares doenças degenerativas são recessivos: precisam estar presentes no DNA da mãe e do pai, uma probabilidade que diminui entre os cães SRD.
Tudo isso torna os cães vira-latas mais resistentes e saudáveis, menos sujeitos a enfermidades crônicas.
02. Fortes e longevos
Naturalmente, eles exigem cuidados veterinários, vacinas, vermifugações e ambientes hígidos, assim como qualquer outro animal de estimação, mas são muito menos propensos a uma série de doenças graves e degenerativas.
A expectativa de um cão vira-lata depende de uma série de fatores, como as condições de vida da mãe (notadamente durante a gestação), as raças envolvidas na árvore genealógica e os cuidados adequados com os filhotes recém-nascidos.
Um vira-lata de porte pequeno ou médio pode ultrapassar os 18 anos de idade, enquanto um grandalhão sem raça definida quase sempre consegue apagar as velas do 15º aniversário. Estes números são parecidos com os de raças caninas famosas pela longevidade, como o pinscher miniatura (18 anos) e o dogue alemão (12 anos).
03. Personalidades cativantes
Todos os cães são conhecidos pela lealdade, adaptabilidade e afeto com a família. Isso tem uma explicação simples: quando os humanos e os lobos começaram a compartilhar atividades de caça – as presas estavam cada vez mais raras com o avanço da Era Glacial –, os peludos que se aproximaram dos acampamentos foram justamente os menos agressivos e violentos.
Com o passar dos séculos, os cachorros mostraram toda a sua versatilidade. Eles passaram a tomar parte não apenas da caça, mas da guarda, do cuidado com os humanos mais jovens, com o manejo do gado nas primeiras atividades pastoris e, um pouco mais tarde, nas invasões e assaltos a outras aldeias. Nas conquistas romanas, o cão molossus era uma verdadeira arma de guerra.
Foi assim, aos poucos, que as raças caninas foram definidas, cada uma exibindo atributos específicos. Alguns animais precisavam ser pequenos e esguios o suficiente para invadir tocas de roedores e expulsá-los das hortas e canteiros. Outros se tornaram imensos, para controlar rebanhos bovinos, impedir invasões de propriedades e dar combate aos inimigos.
Por isso, para cada raça canina, pode ser descrito um comportamento específico. As características de personalidade dependem em boa parte das influências do ambiente, mas os genes também são determinantes no comportamento.
Um exemplo clássico é o das raças do tipo bull, desenvolvidas para lutar com outros animais. As lutas foram proibidas na Inglaterra em 1835, o que permitiu ao buldogue inglês tornar-se pacato e bonachão. O american pit bull terrier, o american staffordshire terrier e o american bully, por exemplo, continuam sendo agressivos em relação a outros cães e, muitas vezes, também no relacionamento com humanos.
Os vira-latas reúnem características comportamentais dos cães desenvolvidos para as mais diversas atividades. Por isso, eles não são especialistas em nada: não são caçadores, pastores, guardiães, etc., mas uma fusão de todos eles.
Isto não significa que os vira-latas não sejam inteligentes. Nas tarefas em que é preciso aprender comandos sofisticados, a maioria deles apresenta resultados muito positivos. Eles podem se destacar como cães-guia ou de suporte terapêutico, no farejamento para tarefas de salvamento e resgate e alguns, a depender das características físicas, podem ser bons atletas.
04. Amor incondicional
Esta característica é mais um atributo canino, mas se revela de forma ainda mais especial nos cachorros com histórico de negligência, maus tratos e abandono – e, neste caso específico, podemos incluir cães de raça pura que precisaram virar latas para sobreviver.
A sobrevivência na rua, em ambientes francamente hostis, já revela a capacidade de adaptação dos cachorros, que precisam encontrar alimento e abrigo para descansar e se proteger do sol, do frio e do vento, além de escapar de agressões e acidentes, como quedas e atropelamentos.
A experiência com certeza é muito ruim, mas a maioria dos cachorros, vira-latas ou não, consegue superar sem traumas os episódios de insegurança. O recolhimento a um abrigo é uma mudança de status substancial: não é preciso virar latas, há espaços para banhos de sol, locais abrigados e seguros para o descanso, etc.
Os cachorros que passam por estas condições devem considerar que a adoção é uma espécie de redenção, algo que se reveste de caráter religioso. Para os vira-latas, por fim, existe um tutor, uma família, uma casa exclusiva para eles.
Os nossos melhores amigos são muito inteligentes. Alguns estudiosos do comportamento canino afirmam que a docilidade, devoção e lealdade são estratégias para a obtenção de cuidados e carinho. Seja como for, ao superar o abandono, os peludos passam a demonstrar amor incondicional aos seus “salvadores”. Eles também aprendem rapidamente as regras de casa, porque já passaram por experiências semelhantes e porque querem agradar e divertir a família, ainda mais que outros cachorros.
05. Beleza insuperável
Existem vira-latas de porte pequeno, médio e grande. Desta maneira, eles conseguem satisfazer as preferências de qualquer família. Os cães SRD também apresentam pelagens as mais variadas, com relação à textura, ao comprimento e à cor.
Além da nova unanimidade nacional: o vira-lata caramelo, há animais mestiços brancos, pretos, marrons, acinzentados, creme, azulados e avermelhados. Um vira-lata pode ter a pelagem sólida, bicolor ou tricolor, com manchas regulares e irregulares, malhas, máscaras faciais, etc.
Cães de raça podem ser impedidos de participar de competições e exposições oficiais por falhas minúsculas: eles recebem pedigree, mas nunca serão campeões em torneios de cinologia. É o caso, por exemplo, dos dogues alemães com a trufa cor de fígado ou fendida.
Outros exemplos podem ser citados. Os pastores alemães não podem ter falhas na cauda, nem sinais de albinismo; um bichon frisé não deve ter prognatismo, nem despigmentação na trufa, lábios e pálpebras; um dachshund não deve exibir ombros soltos, nenhum defeito na cauda nem prognatismo.
Todos os critérios foram estabelecidos de acordo com a garantia de saúde e bem-estar para os cachorros, assim como características ideais para desempenhar as tarefas definidas para a raça. Mas, convenhamos, são poucos os pastores que pastoreiam, a maioria dos dachshunds nunca viu uma marmota, huskies siberianos não precisam mais puxar trenós e pit bulls não participam mais, pelo menos em tese, de confrontos com outros cachorros.
Os vira-latas não sofrem com nenhum desses problemas. É certo que eles não participam de eventos oficiais, mas quase sempre estes eventos dizem mais respeito aos humanos. Eles podem exibir, sem susto, manchas na pelagem, lábios soltos ou ajustados, orelhas eretas ou caídas, ter o corpo quadrado ou retangular e, muitas vezes, o detalhe que afasta o cachorro de um padrão é justamente o que o torna ainda mais bonito e irresistível.
Mais curiosidades
- No Brasil, de acordo com pesquisa publicada no “Estadão”, os nomes mais comuns das vira-latas são Mel, Luna e Nina. Entre os machos, os preferidos são Thor, Luke e Bob.
- Vira-latas é uma expressão genuinamente brasileira. Em Portugal, eles são conhecidos como rafeiros nos países de língua inglesa, são chamados de “mixed breeds” e alguns acasalamentos são muito populares: labradoodle, bassetoodle, etc.
- A saúde dos vira-latas quase sempre é excelente. Eles não foram submetidos a acasalamentos seletivos e por isso, são membros da espécie que se submeteram a uma longa seleção natural. Com os vermífugos e as vacinas em dia, eles não precisam de muitas atenções neste quesito.
- O espaço entre os cios das fêmeas vira-latas que viveram nas ruas é mais curto e elas são mais férteis. Elas foram submetidas a diversos feromônios e outros estímulos sexuais. Uma das principais providências dos novos tutores é providenciar a castração o quanto antes.
- Vira-lata e outras expressões equivalentes, como tomba-lata, rasga-saco, etc., é politicamente incorreta. O certo é chamar estes cães como sem raça definida – SRD.