A resposta é: não! Bocas de cachorros e de humanos podem conter sujeira, impurezas e germes.
Seja para exaltar os cachorros, seja para humilhar os humanos, muitas vezes são criadas histórias sem nenhum fundamento. Uma delas, talvez para realçar a “excelência canina”, diz que a boca dos cães é mais limpa do que a de um ser humano, mas não é preciso se aprofundar muito para perceber que isto é uma tremenda bobagem.
A boca (humana e canina) é um instrumento para a ingestão, a respiração e a comunicação. Ela e os órgãos anexos estão em contato constante com o ar atmosférico, a água, os alimentos, etc. Em muitas ocasiões, esses meios estão sujos ou contaminados e, naturalmente, a boca pode se sujar e se infectar.
A história: A boca do cachorro é mais limpa que das pessoas
“A boca dos cachorros é mais limpa do que a dos seres humanos”. Algumas pessoas levam tão a sério essa mentira que chegam a afirmar que a saliva dos peludos teria propriedades bactericidas.
Muitas vezes, o argumento é usado apenas para contrapor a opinião (e as reações) de outras pessoas que não aceitam muita intimidade com os pets, e até nem gostam deles. Muitos tutores beijam e abraçam os seus cachorros, ficando sujeitos a sermões sobre os cuidados com a higiene.
Na verdade, esta é apenas uma disputa entre dois ou mais humanos. Os cachorros não fazem ideia dos motivos da discussão e provavelmente nem se importam, a menos que o bate-boca gere gritos e agressões – neste caso, os peludos certamente partem para ajudar o seu tutor.
Seres microscópicos
O organismo dos seres mais complexos – como é o caso dos humanos e também dos cachorros – é colonizado por uma infinidade de bactérias. Nós somos universos para milhões ou bilhões de seres microscópicos.
As maiores colônias de bactérias se estabelecem no intestino, na pele e na boca. Em condições normais, elas garantem a absorção de alguns nutrientes, “reciclam” células epiteliais mortas e, misturadas à saliva, formam um fermento para começar a dissolver os alimentos.
Quando surgem desequilíbrios, porém, as bactérias podem se multiplicar aceleradamente e, então, surgem alguns problemas. Uma superpopulação de seres microscópicos contribui para a formação da acne, de cáries dentárias e também prejudica a absorção dos nutrientes, causando diarreias, vômitos ou prisões de ventre.
Tudo isso pode acontecer tanto em humanos, quanto em caninos. Mas, em geral, os hábitos de higiene são melhores entre os humanos. Desde que a existência dos seres microscópicos foi descoberta, no século 19, nós redobramos os cuidados para evitar a exposição excessiva.
A nossa boca também está repleta de bactérias que podem ser perniciosas. Mas a escovação dos dentes, realizada várias vezes por dia, reduz substancialmente esta população. Os cachorros, aliás, também precisam ter os dentes escovados pelo menos a cada dois dias, mas esta tarefa ainda não é realizada pela maioria dos tutores.
Os cachorros não sabem da existência de fungos e bactérias. Para eles, revirar uma lata de lixo é muito mais divertido do que passar a tarde em um parque de diversões. Eles também adoram escavar a terra, para desespero de jardineiros profissionais e amadores, e inspecionam qualquer coisa diferente que encontram no caminho.
Mesmo com toda a atenção dos tutores, essas atividades ocorrem cotidianamente. Os cachorros não têm mãos como as nossas: quando querem pegar alguma coisa para investigar, eles usam a boca.
E, quando essa “alguma coisa” está contaminada, eles transportam sujeira, impurezas e germes para a boca, que podem ser transferidos com muita facilidade para outros seres, como os humanos, gatos e cachorros com quem convivem.
Vale lembrar que a microbiota bucal que está alojada em nossas bocas, em condições normais, não é prejudicial à nossa saúde, mas pode prejudicar a saúde de quem tocamos. Todos nós portamos germes o tempo todo.
Isto não significa que, a qualquer contato com a boca de um cachorro (ou de outro ser qualquer), ocorrerá necessariamente uma infecção. Isto depende do tipo de micro-organismo, da quantidade transferida e das condições do sistema imunológico.
Os beijos
Isto também não significa que um tutor que goste de receber lambeijos esteja em risco iminente de infecções. Como já foi dito, cada ser porta uma população microscópica específica, que quase nunca consegue colonizar outras espécies.
Desta maneira, as bactérias comuns à boca dos cachorros não encontrarão condições favoráveis para manutenção da vida caso sejam transferidas para bocas humanas (ou de um gato, por exemplo). Mesmo assim, é importante salientar que alguns micro-organismos são comuns a várias espécies.
Boca saudável?
Pelo que foi acima exposto, fica fácil concluir que as bocas dos cachorros não são mais limpas do que as dos humanos. Permitir lambidas e beijos depende das características de cada tutor, mas a frase não serve para justificar as atitudes.
Com relação ao poder bactericida da saliva do cachorro, é preciso considerar que nenhuma secreção animal apresenta esta característica. Algumas seivas de plantas podem ser usadas como agentes naturais, mas a maior parte dos produtos atualmente adotados é formulada sinteticamente.
A ideia de deixar um cachorro lamber uma ferida para desinfetá-la e apressar a cicatrização é tão falsa como a história da “boca mais limpa”. Provavelmente, os micro-organismos transferidos no momento da lambida não serão capazes de provocar mais danos, mas não ajudam na cicatrização.
Além disso, o cachorro pode portar outras impurezas na boca – inclusive a poeira suspensa no ar. Em alguns casos, essas sujidades podem lesionar ainda mais o tecido ferido, que deve ser tratado com produtos adequados ou, na falta deles, com água e sabão.
A ideia das “lambidas curativas” surgiu porque, quando os cachorros se machucam, eles passam alguns minutos lambendo as feridas. Mas eles não estão desinfetando o local (eles nem sabem o que é isso). Apenas estão aliviando a dor, a ardência e limpando o corte com o que têm à mão: a língua.
E, quando os cachorros lambem as nossas mãos (ou o nosso rosto), eles o fazem para apenas demonstrar a afeição e a amizade. Em alguns casos, também porque estamos com o cheiro de algum alimento. Mas, de maneira alguma, para transmitir algum tipo de cura milagrosa.
Essas histórias transmitidas oralmente funcionam da mesma forma que as fake news: alguém lê, não procura outras fontes para confirmar e simplesmente passa adiante. Antes de afirmar qualquer coisa, é preciso analisar e, convenhamos, dizer que “a boca do cachorro é mais limpa do que a nossa” é prova de descaso, superficialidade ou falta de inteligência.