O buldogue francês é fofo, delicado e dócil, mas, ao mesmo tempo, é muito frágil. Para tornar a raça mais saudável e resistente, uma criadora holandesa está empregando técnicas de reengenharia genética.
A raça é uma das mais populares no mundo inteiro – no Brasil, o buldogue francês sempre figura no Top Five das raças caninas puras, com algumas centenas de registros a cada ano, além de muitos outros cãezinhos cujos tutores não providenciam o pedigree.
A raça
Brincalhão, afetuoso e muito inteligente, o buldogue francês já conquistou milhares de fãs. A raça descende diretamente dos buldogues ingleses e surgiu no século 19, quando comerciantes do continente levaram para a França alguns cães “descartados” pelos criadores britânicos.
Na época, o buldogue inglês era a grande estrela das rinhas: ele lutava não apenas com outros cães, mas também com animais muito maiores – o “bull” do nome não é coincidência. Eles realmente foram colocados em disputas com touros, além de lobos e ursos.
Para desenvolver os melhores lutadores, foram selecionados os cães com boca larga e prognatismo (projeção da mandíbula à frente do maxilar). Com este atributo, os buldogues eram capazes de agarrar os calcanhares dos adversários, provocando muita dor.
Os criadores britânicos descartavam os cães menores – o pequeno porte também era importante para as lutas, mas os animais muito frágeis “perdiam a utilidade”. Alguns comerciantes franceses verificaram as condições e decidiram levá-los para casa.
Em Paris, os pequenos fizeram muito sucesso. Eles foram adotados inicialmente para dar combate aos ratos que infestavam (e continuam infestando) as ruas da Cidade-Luz. Aos poucos, os buldogues franceses conquistaram a população e se tornaram unanimidade ao desfilarem pelas boates e cafés parisienses na companhia de artistas como Henri de Toulouse-Lautrec e Edgar Degas.
No final do século 19, foi publicado o primeiro padrão oficial da raça. Os buldogues franceses se tornaram muito populares, mas a seleção contínua por cães menores e com focinho cada vez mais achatado potencializou uma série de insuficiências orgânicas (leia abaixo).
Uma nova linhagem
Os acasalamentos seletivos dos cachorros, visando à obtenção de determinadas características físicas, sempre foram empregados pelos humanos. A incrível capacidade de adaptação da espécie também contribuiu para isso.
As diversas raças se especializaram em muitas funções, como caça, guarda, resgate, atividades policiais e militares, etc. A seleção contínua, no entanto, gerou uma série de transtornos à saúde: alergias, distúrbios cardíacos e renais, etc.
No caso dos buldogues franceses e algumas outras raças, a cara amassada parece sintetizar o charme dos cãezinhos, ao lado do porte muito pequeno (eles atingem em média 32 cm de altura). O prognatismo cada vez mais acentuado, contudo, sempre é acompanhado por disfunções, especialmente na circulação sanguínea e na respiração.
Chantal van Kruining é uma assistente veterinária apaixonada por cães, principalmente os de pequeno porte. Exercendo a profissão há anos, ela convive com os efeitos devastadores da braquicefalia. Chantal decidiu agir e estabeleceu a sua própria linhagem de buldogues franceses.
A assistente veterinária criou até mesmo um slogan para a reengenharia genética que está promovendo para reestruturar os buldogues franceses: “Criar animais para a saúde, não para as exposições”.
Em competições oficiais, são penalizadas quaisquer anomalias que possam prejudicar a saúde e o bem-estar dos cães. Mesmo assim, a demanda pelos focinhos achatados – e os altos preços obtidos pelos cães braquicefálicos – vem deixando de lado a qualidade de vida dos peludos.
A imensa maioria dos cães da raça sofre de síndrome braquicefálica. Isto significa que as dificuldades para respirar se tornam tão graves que colocam em risco os buldogues franceses. A condição também pode ser verificada em outras raças, como os pugs, shih-tzus e lhasa apsos.
A síndrome afeta inclusive alguns cães de médio e grande porte, como boxers e dogues de Bordéus – estes últimos apresentam a menor expectativa de vida do mundo canino: no máximo, oito anos e, aos cinco, já são considerados idosos.
Chantal criou o canil Hawbucks French Dogs, instalado em Rockanje (Países Baixos). Hawbuck significa “falcão” em holandês, mas, por extensão, é também a palavra que designa os “fazendeiros caipiras”.
A ideia da criadora é mudar a definição dos cãezinhos: eles não são buldogues elegantes, mas animais irrequietos, enérgicos e, se puderem respirar livremente, muito ativos e ágeis. Chantal quer que os buldogues franceses sejam vistos como bagunceiros, brincalhões e agitados: como cães de verdade.
A holandesa quer afastar a raça da ideia de que se trata de cães frágeis, delicados e de colo. Para tanto, já há algumas gerações, Chantal vem selecionando os animais mais “narigudos” para a procriação. Os hawbucks atuais já apresentam o comprimento do focinho quase equivalente ao do topo do crânio.
No site do canil, é possível observar os avanços obtidos. Os novos cães mantêm a aparência básica do buldogue francês, mas com um focinho mesocefálico: nem pontiagudo, como um pastor alemão, nem achatado, como o pequinês e o cavalier king charles spaniel.
As vantagens dos hawbucks são inúmeras. À primeira vista, eles se parecem com buldogues franceses “diferentões”. As vantagens surgem na resistência física: os cães criados por Chantal conseguem correr e brincar sem problemas respiratórios e circulatórios.
No site, é possível conferir as mudanças provocadas pelo focinho um pouco mais comprido. Os novos buldogues franceses apresentam laringe e traqueia mais compridas, narinas menos abertas e maior resistência aeróbica e anaeróbica.
As vias aéreas mais longas são responsáveis por aquecer o ar que é levado aos pulmões, reduzindo o impacto dos choques térmicos. O percurso maior também permite a retenção de impurezas do ar e de agentes patogênicos, como vírus e bactérias, tornando os hawbucks menos suscetíveis a infecções.
Para que os interessados possam conferir os resultados obtidos, Chantal disponibiliza todas as avaliações clínicas, exames laboratoriais e de imagem dos buldogues franceses do canil. No site, é possível acompanhar vários vídeos dos cãezinhos correndo e exercitando-se sem dificuldades nem limitações.
A Federação Cinológica Internacional (FCI) não se pronunciou oficialmente sobre os métodos empregados por Chantal para a criação de buldogues franceses. A entidade tende a aceitar intervenções que visem à saúde, bem-estar e conforto dos cães, mas, por enquanto, os hawbucks não podem ser apresentados em competições oficiais.
A braquicefalia
É uma característica anatômica de diversas raças: quatro das mais populares no Brasil – pug, lhasa apso, shih tzu e buldogue francês – são braquicefálicas. Eles são realmente bonitos e atraentes, mas o focinho encurtado destoa bastante da espécie.
Através de cruzamentos seletivos, criadores de diversas partes do mundo conseguiram encurtar o focinho dos cães, tornando a aparência mais atraente. Estes cachorros apresentam face arredondada e olhos arregalados. Eles acabam parecendo inofensivos, com um aspecto quase irreal, como se fosse um brinquedo.
O focinho encurtado foi obtido por criadores através de cruzamentos seletivos: quanto mais “amassada”, mais agradável parecia ser a aparência dos cães. A preocupação com um aspecto menos feroz é antiga: há registros de cães muito parecidos com os pugs, na China, datados de 1700 AEC. Na China, os criadores também criaram outra raça braquicefálica: o pequinês.
A partir do século 17, os pugs começaram a ser levados para a Europa por marinheiros da Companhia das Índias Orientais. Fizeram muito sucesso especialmente na Inglaterra (país patrono da raça), onde provavelmente cruzaram com antigos buldogues e passaram a ser chamados de “pug nose” (nariz achatado).
No caso do pug, a braquicefalia foi determinada aparentemente por motivos puramente estéticos: quanto mais achatada for a face, menos o cachorro lembra os lobos, seus ancestrais, que exibem focinhos alongados.
Mas há outra razão: nos chamados esportes sangrentos, a mandíbula larga é uma vantagem nas competições e, ao encurtar o focinho, a mandíbula se torna proeminente. Este é o motivo da “preferência” por parte dos criadores de buldogues ingleses, boxers e dogues de Bordéus: além de serem bons de briga, são perfeitos cães de agarre (ou de fila).
Predisposição para doenças
O focinho encurtado pode parecer mais bonito para algumas pessoas, mas certamente é disfuncional: ele não cumpre com eficiência a tarefa de transportar o ar para os pulmões (e vice-versa). Desta maneira, os cachorros precisam de esforços maiores para captar oxigênio e eliminar dióxido de carbono.
Por isso, o buldogue francês e os demais cães de cara amassada têm, em algum grau, dificuldade para respirar. Com o sistema respiratório deficiente, todo o organismo se ressente, porque não recebe suprimentos de oxigênio suficientes.
No longo prazo, a dificuldade para respirar provoca outros problemas. Um cachorro braquicefálico é mais suscetível a infecções, como gripes e resfriados. O esforço contínuo pode comprometer outros órgãos e sistemas, prejudicando o funcionamento dos rins e do fígado, por exemplo.
Por tudo isso, buldogues franceses e ingleses, lhasa apsos, shih tzus, pequineses cavalier king charles spaniels, boston terriers, pugs, shar-peis, staffordshire bull terriers, boxers e dogues de Bordéus apresentam menor expectativa de vida. Mesmo os pequenos são menos longevos, vivendo, em média, de dez a 12 anos (contra os 18 dos dachshunds).
A síndrome braquicefálica, conjunto de doenças determinado pelo focinho achatado, afeta mais da metade dos cães das raças citadas. A dificuldade para respirar provoca apatia e cansaço, que levam ao sobrepeso e à obesidade, com todos os comprometimentos à saúde. Em alguns casos severos, a síndrome pode levar à obstrução das vias respiratórias superiores, chegando a ser letal.
Além das doenças, a braquicefalia é responsável também pelos roncos. O estreitamento da laringe faz as vias respiratórias vibrarem com a passagem do ar, provocando os sons característicos. Pode parecer divertido, mas é uma limitação severa.
Os cães braquicefálicos, especialmente os buldogues ingleses e franceses, também são mais suscetíveis a doenças oftalmológicas. A falta de espaço no crânio faz os globos oculares saltarem para fora, ficando mais expostos a traumas e também a bactérias e vírus.
Buldogues franceses e outros braquicefálicos são especialmente suscetíveis ao glaucoma e à catarata. Eles também sofrem com entrópio e ectrópio (pálpebras dobradas para fora e para dentro), disfunções das glândulas lacrimais determinantes de olho seco, lágrima ácida, etc.
Os peludos de focinho achatado são também menos resistentes a variações climáticas. As narinas têm inclusive a função de equilibrar a temperatura do ar inspirado, mas, com vias muito curtas, o ar chega muito quente ou muito frio aos brônquios. Os buldogues franceses sofrem especialmente com a hipertermia (elevação súbita da temperatura corporal), que pode até mesmo causar a morte dos animais.
O mal-estar geral causado pela respiração deficiente provoca apatia, desinteresse e cansaço. Os cães mais afetados deixam de brincar e correr; sem exercícios físicos adequados, acabam ganhando peso, com todas as deficiências da obesidade. Os buldogues podem precisar inclusive de rações especiais menos calóricas.
Por tudo isso, os criadores precisam reestruturar a anatomia dos cães, como Chantal van Kruining vem fazendo em seu canil nos Países Baixos. Já existem projetos semelhantes envolvendo pugs e boston terriers, enquanto a maioria das linhagens dos boxers já superou os transtornos.
Não vale a pena querer um cachorro bonitinho às custas da saúde e do bem-estar. Afinal, todos os cães são bonitos, cada um a seu modo. Além disso, não se pode esquecer que eles descendem dos lobos, com suas orelhas eretas e focinhos longos, com dentes poderosos. Pode-se perseguir alterações na pelagem, no formato anatômico e no porte, mas sem comprometer as funções orgânicas e a qualidade de vida. Os peludos agradecem.